Movimentos sociais participam da construção do planejamento estratégico da Embrapa Cerrados

Representantes da agricultura familiar e de comunidades tradicionais refletiram sobre os rumos do desenvolvimento do Cerrado.
A partir da pergunta “Quais são as demandas prioritárias para a pesquisa agropecuária até 2030 e como a Embrapa Cerrados pode contribuir?”, representantes de sete movimentos sociais e de instituições ligadas à agricultura familiar refletiram sobre os rumos da pesquisa para a produção de alimentos e segurança alimentar dos trabalhadores rurais.
Essa foi a primeira vez que foi realizado um amplo debate com esse público, para entender os desafios de quem vive e produz nos territórios. “A escuta das demandas, dos problemas e das dores dos movimentos sociais ligados à agricultura familiar é muito importante para a Embrapa Cerrados, no momento em que comemoramos 50 anos e estamos construindo nossa agenda de pesquisa até 2030”, ponderou Eduardo Alano, chefe de Pesquisa e Desenvolvimento da Embrapa Cerrados.
As discussões, realizadas nos dias 29 e 30 de setembro, fazem parte das sondagens e análises que estão sendo feitas para a construção da Agenda Estratégica da Embrapa Cerrados 2024-2030. “Queremos ter um documento que realmente reflita as demandas e necessidades desse importante setor da agricultura brasileira”, completou.
A deputada federal Erika Kokay acompanhou as discussões do primeiro dia de reunião e ressaltou a importância do que chamou de “dança dos saberes”, um diálogo entre os conhecimentos científicos e os tradicionais. “Nós estamos aqui nesse exercício de escuta dos movimentos sociais, que têm o seu fazer, que têm o seu saber, que têm os seus sonhos e que têm os seus objetivos e que se firmam na construção de um país mais igualitário. Estamos aqui no exercício de democracia, de soberania, porque a soberania nacional pressupõe respeito ao meio ambiente, mas também pressupõe que temos soberania popular e soberania alimentar”, enfatiza.
Participaram dos debates o Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Sem-Terra (MST); a Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares (Contag); a Escola Família Agrícola de Natalândia; o Movimento Camponês Popular (MCP); a Confederação Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura Familiar do Brasil (Contraf); o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA); a Cooperativa da Agricultura Familiar Sustentável com base na Economia Solidária (Copabase).
Demandas para produção de alimentos saudáveis
Alguns temas foram unânimes quando se falou em tecnologias que são importantes para o desenvolvimento das comunidades, essenciais para a produção de alimentos saudáveis. Agroecologia, produção de sementes e bioinsumos, uso e gestão da água e preservação dos recursos naturais foram citados em todas as falas.
Devanir de Araújo, representando o MST, ressaltou a necessidade da expansão da agroecologia para a produção de frutas, hortaliças e grãos. “Nós precisamos dialogar de fato com os órgãos governamentais, os pesquisadores, como os da Embrapa e os das universidades, para desenvolver a agroecologia”, pontuou, em participação por videoconferência.
Para Lidenilson Silva, coordenador nacional do Movimento Camponês Popular (MCP), a agroecologia deve considerar estratégias para garantir a qualidade e a saúde do solo, permitindo que o solo se recomponha com o uso de adubações verdes, bioinsumos, plantas de cobertura, da regeneração de florestas, entre outros.
Quanto às sementes, ele destacou: “A semente é o elemento vital, é a vitamina para a sociedade pensar nas futuras gerações. Ela também tem que ser sadia porque vai se tornar alimento. É muito importante que ela tenha a sua qualidade e diversidade garantidas. Não é só um produto de relação comercial”, disse, alertando sobre o desaparecimento da diversidade genética de sementes e dos saberes e valores a ela incorporados e compartilhados nos territórios.
Especificamente para o Centro-Oeste, outras demandas foram levantadas pelo MST, como contou Devanir: “Nós estávamos em uma reunião com o nosso coletivo e pensamos em três cadeias produtivas que seriam importantes para alavancar a produção, mas também pensando na produção saudável de alimentos não só para alimentar, mas para geração de renda – milho, arroz e feijão”. Esses são ingredientes que fazem parte do prato cotidiano dessas populações e o MST entende ser importante que elas tenham autonomia na produção e no beneficiamento de seus alimentos. “A gente tem que olhar para isso: Como, no Cerrado, a gente pode ao mesmo tempo cuidar dele e ele ser uma fonte de geração de renda para as famílias. Tem que se pensar em toda a cadeia produtiva também”, explicou.
Lázaro de Sousa Bento, coordenador de gestão, finanças, políticas públicas e sociais da Contraf, apontou como grande desafio a transição da agricultura convencional para a agroecologia: “Quem quer começar a produzir precisa corrigir o solo, não tem uma semente adequada e o processo de produção é diferente do tradicional. Isso precisa ser construído, há passos a seguir e é importante que esse processo seja bastante debatido, senão a pessoa começa num ano e larga de mão no ano seguinte”.
Aproveitamento das riquezas do Cerrado
Para o vice-presidente da Contag, Já Marcos Vinicius Nunes, é necessário apoio para que as comunidades processem produtos oriundos do extrativismo, para aumentar suas rendas. “Muitas vezes os agricultores acabam vendendo aquela produção do extrativismo por um valor muito baixo. E aí quem ganha dinheiro não é quem está indo lá no mato buscar. Quem ganha dinheiro é o atravessador, que pega aquele produto na mão do agricultor familiar e passa pra frente”, lembrou.
Por videoconferência, Dionete Figueiredo, gerente da Copabase, sediada em Arinos (MG), que tem mais de 300 famílias de agricultores familiares e de comunidades extrativistas associadas, destacou como grande desafio o fortalecimento das cadeias produtivas para melhorar a qualidade de vida das famílias e viabilizar a sucessão nas propriedades e na própria cooperativa. “Para atrair os jovens, é preciso de motivação. Ninguém trabalha de graça. É importante que nós e a pesquisa nos unamos cada vez mais para trazer melhorias nos sistemas de produção e mecanismos de boas práticas de manejo alternativos aos desafios que eles enfrentam”, declarou.
Desafios específicos e oportunidades de negócios para a cadeia do baru, cuja castanha, junto com as polpas de frutas, é o principal produto comercializado pela Copabase, foram elencados, além de temas como a demanda por frutas secas e desidratadas, o desenvolvimento de novos produtos a partir de frutas do Cerrado, como a mangaba, a falta de conhecimentos sobre coleta, armazenamento e conservação de sementes do Cerrado, bem como a certificação de produtos para acessar mercados.
A ciência na ponta da cadeia produtiva
Um gargalo para as instituições científicas, segundo Nunes, é fazer chegar aos agricultores tudo o que já foi produzido pela ciência: “Tem um produto, mas aquilo não chega depois de pronto para o agricultor familiar”. Ele dá o exemplo do pai, hoje com 76 anos. “Meu pai, por exemplo, começou a mexer, talvez de uns três anos, dois anos para cá, em celular. Ele não sabe digitar, mas ele usa áudio para se conectar, para conversar com as pessoas, para ouvir, para pedir ajuda. Então, como que a gente utiliza essas tecnologias que existem hoje para que a pesquisa possa chegar na ponta?”, desafiou.
O professor Deleon de Carvalho, da Escola Família Agrícola de Natalândia, em Minas Gerais, apesar de entender a necessidade de que as tecnologias cheguem aos povos que vivem isolados, apontou um ajuste necessário: “A gente precisa fazer com que essas tecnologias sejam adaptadas, sejam mostradas a partir do conhecimento que já existe lá. Os produtores têm as regras deles, as instituições deles. Se a gente não adaptar isso e pegar esse conhecimento para unir ao científico, infelizmente a maioria das tecnologias produzidas pela ciência vão ser abortadas por esses modelos agrícolas”.
Lidenilson Silva, do MCP e também membro do Comitê Assessor Externo da Embrapa Cerrados, reforçou essa questão. Ele apresentou, como primeira demanda, a produção de alimentos saudáveis com melhoramento genético de variedades e espécies em consonância com os conhecimentos tradicionais, a cultura alimentar do povo brasileiro e a lógica do consumo local.
“Queremos que a pesquisa se desvista de superioridade intelectual e se coloque no estágio de humildade intelectual com os camponeses para ouvi-los, pois eles têm muito a dizer e a reposicionar o conhecimento científico. É na observação cotidiana que surge a ciência”, afirmou, ponderando que, apesar de deterem saberes do campo, os camponeses estão desprovidos de inovações tecnológicas e do acesso à inclusão digital para garantirem a sucessão rural.
Como solução, o professor de Natalândia, aconselhou a montagem de unidades demonstrativas de tecnologias nas comunidades. Segundo ele, os produtores tradicionais são como São Tomé, que precisa ver para acreditar. Ele dá como opção sua escola, que tem hoje 1.500 alunos e foi a primeira a oferecer curso superior dentro de um assentamento rural. “A escola atende 50 municípios. As unidades de produção demonstrativa dentro da escola fazem com que os jovens que estão lá estudando copiem essas tecnologias. Essa é uma forma de a gente, nem vou falar em transmitir, mas de trocar essas experiêncisa com os produtores, utilizando a escola como instrumento”, pontuou.
Outra solução é apresentada por Bento, da Contraf. “Precisamos aumentar o diálogo entre os movimentos sociais, as empresas de Ater, cooperativas, sindicatos, federações e associações e a Embrapa para pensarmos juntos uma estratégia que beneficie o agricultor”, afirmou, sugerindo a realização de um encontro nacional.
Questões ambientais e mudanças no campo
Questões ambientais, como a proteção de nascentes, a produção de água, a recuperação de áreas degradadas, não ficaram de fora do debate. O dirigente do MPA Marcelo Leal lembrou que as mudanças climáticas estão alterando a dinâmica dos sistemas agroalimentares e ocasionando uma crise ecológica, com erosão da biodiversidade, destacadamente dos polinizadores, o que pode comprometer a produção de alimentos fundamentais.
Leal listou alguns temas para a pesquisa: agrobiodiversidade das sementes, repensando os tipos de alimentos a serem produzidos; desenvolvimento de bioinsumos nos territórios a partir dos recursos técnicos disponíveis; criação de um mercado para máquinas e equipamentos apropriados ao campesinato; conservação de água; restauração ecológica e o cuidado com os polinizadores; o letramento digital e o consequente avanço na adoção de tecnologias digitais.
A sucessão rural também foi tema do destaque, pela necessidade de permanência dos jovens no campo. Para o vice-presidente da Contag, a alternativa para o jovem continuar no campo é oferecer condições diferenciadas: “As pessoas veem as possibilidades de micromecanização, as máquinas adaptadas, a tecnologia, a internet… Então elas não vão continuar do mesmo jeito que estavam antes. Vão querer trabalhar em outras condições, produzir muito mais, mas ter um tempo livre e o campo ser um lugar não só de produção, mas também de sucesso, de lazer, de vida”.
Silva, do MCP, também trouxe essa discussão: “É preciso desenvolver e dar acesso a tecnologias e a uma estrutura produtiva que seja referência para a juventude permanecer na terra”, completou.
Novos demandas para a pesquisa
Um ponto escuro para essas comunidades, segundo o professor de Natalândia, é a agricultura digital. “Nós também gostamos de mexer em aplicativo, de passar o dedo na tela do celular. Eu não sei nem de que forma, mas nós precisamos apresentar a agricultura digital para as comunidades ribeirinhas, para os geraizeiros, para os cerradeiros, para todos os povos, porque o momento é digital e a gente precisa resgatar esses povos, de maneira que eles também queiram vir”, incitou.
Raul Zoche, também representante da Contag, lembrou que a Embrapa foi concebida, na década de 1970, para desenvolver sistemas de monocultura, para produção em larga escala para exportação. Apesar desse foco inicial, ele reconheceu que a empresa ampliou seu portfólio de tecnologias, mas cobrou o desenvolvimento de pesquisas que mensurem o estoque de carbono em sistemas agroecológicos, como as que já foram feitas para as culturas comerciais. “O cara que fez a taxonomia sustentável brasileira não consegue saber que do lado tem uma agroecologia que tem talvez dez vezes mais estoque de carbono e talvez tenha uma rentabilidade por hectare dez vezes maior [em comparação à lavoura de soja], porque tem diversidade de produtos com valor agregado e tem gente que está sendo empregada ali”.
Ele explicou que a falta dessas informações impede o agricultor familiar de ter acesso a financiamentos alinhados a questões climáticas. “Eu queria que os resultados da Embrapa jogassem a favor dessa Embrapa mais sustentável que já existe”, incitou.
De Natalândia, Deleon de Carvalho fez um apelo: “Olhem pra gente, vocês que pesquisam. A gente trabalha muito, a gente produz muito. Vocês chegam à casa da minha mãe, ela tem 71 anos, e eu duvido que vocês não vão encontrar menos que dez produtos que ela produz, assim, na enxada, na mão. Estou falando da minha mãe porque, desses alunos que eu falei, no mínimo, 80% têm a mesma realidade que ela”. Ele enfatizou a urgência de se olhar para as escolas de famílias agrícolas, que não estão no radar da ciência, da política e dos órgãos de pesquisa.
Ao final do encontro, o chefe de P&D da Embrapa Cerrados reforçou que essas demandas serão consideradas na agenda que está em elaboração. “Ficamos muito felizes com esses momentos de discussão e aprendizado. Acreditamos que, com a construção conjunta, os projetos de pesquisa terão maior chance de êxito”, encerrou.
Link da matéria: https://www.embrapa.br/busca-de-noticias/-/noticia/103529593/movimentos-sociais-participam-da-construcao-do-planejamento-estrategico-da-embrapa-cerrados
Comentários