Quando o protesto vira ameaça à democracia

Editorial
Senadores bolsonaristas transformam o Congresso em palco de teatralização política ao atacar o STF e apoiar ações antidemocráticas
Parlamentares da oposição protagonizaram, nesta semana, cenas que escancararam a crescente tensão entre Legislativo e Judiciário, e revelaram uma perigosa imaturidade política no coração do Parlamento brasileiro. No Senado, representantes da oposição organizaram um protesto contra a decisão do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), que decretou a prisão domiciliar do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), no âmbito da operação Tempus Veritatis, da Polícia Federal.
Com adesivos na boca, os senadores ocuparam as mesas da Casa como forma simbólica de protesto, denunciando o que classificaram como censura promovida pela Corte. O ato, realizado na terça-feira (5), contou com adesão de parlamentares como Carlos Portinho (PL-RJ), Izalci Lucas (PL-DF), Magno Malta (PL-ES), Marcos Pontes (PL-SP), Eduardo Girão (Novo-CE), Marcos Rogério (PL-RO) e Jorge Seif (PL-SC). Eles informaram que permaneceriam no local até que pautas como o impeachment de Moraes, o fim do foro privilegiado e a anistia aos réus do 8 de Janeiro fossem votadas. O grupo chamou esse conjunto de medidas de “agenda pela pacificação”.
Mas o que se apresentou como protesto legítimo se revelou, na essência, um ataque institucional. O nome da operação que originou a prisão de Bolsonaro, Tempus Veritatis, significa, em latim, “tempo da verdade”. Segundo a Polícia Federal, a escolha da expressão faz “alusão ao esclarecimento de fatos que vieram à luz no decorrer das investigações”. A reação dos parlamentares de oposição, no entanto, foi uma tentativa clara de distorcer esse processo, deslegitimando a atuação da Justiça e lançando dúvidas sobre as instituições da República.
Não se tratou de mera divergência política. Foi mais um episódio do contínuo flerte com o autoritarismo, que tem se repetido no pós-governo Bolsonaro. O protesto no Senado foi performático, vazio de argumentos jurídicos consistentes e recheado de narrativas já refutadas em diversas instâncias. Transformar o Parlamento em palanque de defesa de um réu investigado por tentativa de golpe é grave. É normalizar o anormal. É infantilizar a política em um momento que exige maturidade institucional.
A democracia se fortalece com crítica, sim, mas com crítica responsável, fundamentada e voltada ao bem público. O que se viu foi o oposto: uma encenação para redes sociais, com o claro objetivo de reforçar discursos antidemocráticos e proteger lideranças políticas acusadas de atacar o Estado de Direito.
O país precisa de parlamentares dispostos a debater soluções reais, não a encenar discursos que tensionam ainda mais a frágil estabilidade democrática. O Parlamento não pode ser conivente com a erosão das instituições. Nem cúmplice do revisionismo de quem tentou, e ainda tenta, subverter a ordem constitucional.
Machado de Assis, que atravessou um Brasil em transformação, da Monarquia à República, sabia que o poder, muitas vezes, se esconde atrás das aparências. Em um de seus escritos, advertiu: “A ocasião faz o furto; o ladrão nasce feito.” Talvez hoje ele dissesse que a ocasião faz o discurso, mas o oportunismo já vinha pronto. Seu olhar arguto sobre a hipocrisia e o simulacro político continua atual, e necessário. À democracia, cabe não apenas resistir, mas desmascarar o teatro daqueles que, em nome da liberdade, atentam contra ela.
Referências:
- CNN Brasil. Senadores usam adesivos na boca em protesto por prisão de Bolsonaro. Publicado em 31/07/2025. Disponível em: cnnbrasil.com.br
- CNN Brasil. Adesivos na boca e correntes: como foram as 24h de ocupação do Congresso. Publicado em 06/08/2025.
- CartaCapital. Bolsonaristas ocupam mesas da Câmara e do Senado em protesto contra prisão de Bolsonaro. Acesso em 06/08/2025.
- Polícia Federal. Nota oficial sobre a operação Tempus Veritatis. Disponível em: gov.br/pf
- Supremo Tribunal Federal. Decisão do ministro Alexandre de Moraes sobre prisão domiciliar de Jair Bolsonaro. Publicada em 30/07/2025.
- ASSIS, Machado de. Obras Completas. Ed. Nova Aguilar, 1994.
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